sábado, 21 de junho de 2008

Senhor arroz


Há umas semanas o António surpreendeu-me com um fantástico presente: um curso de escrita criativa. (Devia já estar a achar que eu já só falava sobre fraldas, dodots e afins...) Fiz o curso, diverti-me bastante e, acima de tudo, escrevi muito, o que me deu um gozo enorme. Numa das aulas, a professora lançou um desafio: participarmos no concurso de escrita mensal da revista Cais. O tema de Julho era "Viagem, viagens". E não é que eu ganhei??!!


Viagem de Sabores


Acabou-se! Estava farto daquela vida medíocre. Primeiro tinha sido refeição para miúdos: juntavam-lhe umas rodelas de salsichas e ovos mexidos e lá estava, triste, discreto, relegado para segundo plano.
Depois, na adolescência, passou para arroz branco. Sabia que não era um grande avanço na carreira, mas não estava à espera que o seu desempenho fosse tão apagado. Passava a vida nos pratos de pessoas doentes, quase sem sabor. Até fez parte do famoso bitoque, mas ninguém lhe deu importância. As batatas fritas é que tinham cumplicidade com o bife e até fizeram amizade com a gema de ovo. Ele era apenas o arroz branco que estava ali não se sabe bem porquê.
Mudou de vida novamente. Numa tasca do Rossio conheceu o Jaquinzinho e passaram a formar equipa nas ementas de vários restaurantes. Jaquinzinhos fritos com arroz de feijão, jaquinzinhos fritos com arroz de tomate, jaquinzinhos fritos com arroz de grelos, sempre cheio de molho, ou como os especialistas diziam, sempre malandro.
Cinco anos, três meses e quatro dias depois desta união, o Senhor Arroz sentia que estava na altura de dar novo salto, conhecer novas especialidades. Bateu à porta de um restaurante macrobiótico e apresentou os seus serviços. Só tinham trabalho em part-time e, mesmo assim, teria que partilhar o protagonismo com o arroz glutinoso. Aceitou. Entrava ao meio-dia e saía às quatro da tarde e tinha que andar sempre com uma capa castanha vestida fizesse frio ou calor. A experiência até estava a ser engraçada, mas precisava de algo realmente novo na sua carreira.
Por isso, levantou-se naquele dia quente de Julho, agarrou no dinheiro que tinha ganho nos festivais de arroz de marisco e arroz de cabidela, fez a mala, rabiscou umas palavras de despedida para o Jaquinzinho e partiu. Tinha 43 anos e ía começar uma nova aventura.
Primeiro esteve em Espanha e adorou fazer parte da Paella. Mesmo com muitos condimentos e ingredientes à mistura sentia-se importante e não meramente um figurante. Depois foi a vez de conhecer as cozinhas francesas. Não gostou muito. Sempre enformado no meio de qualquer coisa com muitas natas, voltou a sentir-se um mero arroz branco com a diferença que aparecia todo aprumadinho no meio dos pratos. Mais um bihete de avião e... Itália. Não foi fácil conseguir trabalho. Todos os cozinheiros queriam pasta fosse ela esparguete, fusili, penne ou ravioli. A pasta é que interessava. Três dias de procura depois encontrou uma vaga para risotto, mas teve que perder a sua figura esguia de arroz agulha, engordar umas gramas e ficar mais arredondado. Ficou perto de seis anos em Itália. Depois partiu para a Ásia.
Foi na China que se sentiu o protagonista da cozinha. Em 56 anos de vida nunca se tinha sentido tão importante. O arroz chao chao era o rei da culinária chinesa. Foram anos inesquecíveis, mas sentiu que havia ainda muito mundo para conhecer e voltou a partir.
No Japão viveu sete meses enrolado na alga nori, uma planta sensual com quem manteve um tórrido romance. Mas Nori era possessiva e o Senhor Arroz sentiu-se mais preso que nunca naquele papel de sushi. Na Índia, antes de começar a trabalhar, passou três meses no ginásio a perder peso e transformar-se num verdadeiro arroz basmati. Os cozinheiros eram rígidos e só entrava nas travessas junto ao caril quem estivesse realmente em forma.
Aos 67 anos já se sentia cansado, mas mesmo assim não quis deixar de conhecer África. Em Moçambique tornou-se grande amigo do côco e passou momentos bastante divertidos ao seu lado. Fascinado com o clima tropical ainda viajou até ao Brasil e voltou para a sua carreira de arroz branco, mas desta vez sempre acompanhado de feijão preto. Já reformado, morreu de indigestão nas águas quentes do México, aos 78 anos. No funeral estiveram o Jaquinzinho, o tomate, os grelos, o feijão, o marisco, a alga nori e até as salsichas quiseram prestar-lhe a última homenagem. Na sua lápide, os amigos mandaram escrever “Aqui jaz um arroz aventureiro que se transformou em cada viagem que fez”.


Brevemente numa Cais perto de si!

domingo, 15 de junho de 2008

Ovos fritos com chouriço

Tinha uns olhos azuis pequeninos escondidos atrás de uns óculos de ver de aros grossos. Andava de boina. Era magrinho e não gostava muito de comer, coisa estranha para quem vive com a minha avó - a melhor cozinheira do mundo. Era barbeiro, pintor, carpinteiro, homem de sete ofícios. Gostava do campo, de trabalhar a terra, de passear os animais. Era teimoso - "como tu", diz a minha avó. Teve um carocha verde alface com que me ia buscar à estação de comboios de Mato Miranda. Tinha um relógio de parede que tocava as doze badaladas. Enchia o meu quarto de DumDum para eu não ser engolida pelos mosquitos. Gostava de rir, de crianças, de mulheres bonitas. Gostava da minha avó. Amou-a com todo o seu coração. Não gostava muito de comer, mas adorava doces. De manhã bebia uma enorme caneca de café com leite, juntava-lhe pão e muitas colheres de açúcar. Levava-lhe Guylians, os seus chocolates preferidos que escondia na gaveta da mesinha de cabeceira. Tocava acórdeão. Fazia um assobio engraçado com as mãos que deixava o Tiago a rir às gargalhadas. Ficava admirado com os telemóveis e como a minha avó manuseava-os tão bem. Não gostava de água e jurava que nunca tinha bebido um copo desse líquido. Era dele a expressão "ovos fritos com chouriço." Era o Lelinho, o sr. Carvalho, o avô Carvalho ou o avô Cardoso. Despedia-se de mim sempre com um abraço e um até breve. Agora ficam estas recordações. Boas. As melhores.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

O fato de treino


Há peças de roupa que, de tão pirosas, deviam ser banidas de todas as lojas. O fato de treino é uma delas. Que o meu filho de 3 anos use um para a sua aula de expressão motora é compreensível, embora não menos feio, agora que o sr. Scolari vá para os jogos de fato treino... Por amor da santa! Vai de fato treino porquê? Há alguma possibilidade de ter que calçar as chuteiras e entrar no terreno do jogo? Não há! Fica-lhe bem? Não fica. É de treinador? Não é! Mais triste é quando o jogo termina e o sr. Scolari vai cumprimentar o treinador adversário e lá está ele todo arranjadinho bem penteado e... de fato! Não de fato de treino, mas de fato de casaco e calça e com gravata a condizer... Vergonhoso, no mínimo. É como ir a um jantar de amigos, estarem todos aperaltados e nós aparecermos de jeans e ténis. Não fica bem. Mas, neste caso, aparecer de fato de treino não fica bem em nenhuma altura do dia, nem fica bem a ninguém.
Fora os fatos de treino! Fora as famílias inteiras de fato treino vestido a passear pelo Continente! Fora os fatos de treino sintéticos que fazem barulho a andar! Fora os bimbos que não só usam fato treino como teimam em conjugá-lo com meias brancas, sapatos e telemóveis à cintura! Fora os que usam fato de treino e deixam o casaco aberto para se ver o peito cheio de pêlos e o crucifixo de ouro!
Greve aos fatos de treino!